SONETO DE OUTUBRO

Eu sou de abril; ela, do mês de outubro
Somos de signos muito diferentes
Ela gosta do branco, já eu, do rubro
Sou Lua cheia; ela, quarto crescente.

E num gesto inesperado descubro
Que mesmo em distância latente
Num mistifório louco e alvirrubro
Encontram-se estrelas divergentes.

E desse lado oculto de um desejo
Brota suavemente aquele enredo
Talvez desenriçado do Destino

Que desvendou o velho bom segredo
E num pálido olhar tão repentino
Renasce a razão pela qual versejo.

MORTUÁRIO

Morrera numa quarta-feira de cinzas
Como toda ilusão
Era uma tarde quente
Sem nuvens ou lágrimas que abrandassem o ocorrido
Não houve convites, avisos
Nem adeus
Morte súbita
Embora não tivesse sido surpresa
Porque não fora a primeira de suas mortes

Já acostumado a tantas
Não passou de uma data marcada num calendário
Calejado
Corroído pelo pó e mofo

Morreu
Apenasmente e somente

Talvez para renascer e maltratar e morrer
Como um aborto
Inesperado
Dolorido
Ou flor
Que teima entre espinhos
E da dor e lamento, a beleza
Verdeja porém

Após um enterro sem esplendores
Ganhou uma lápide
Mármore carrara
Com uma inscrição em letras góticas:
“A incerteza fora meu veneno”
Amor Sousa da Silva

SONETO DE LUZ E ESCURIDÃO

Quando, menina, a luz do sol te assiste
E teu belo olhar límpido e discreto
Volta-se para mim tão cheio de afeto
Vejo o quanto meu ser ainda é triste.

Epicuro disse algo muito certo
Quando em um desejo se insiste
A amargura no peito assim persiste
É estar perdido meio a um deserto.

Inda que de teus olhos eu tivesse
Pelo menos, menina, a intensa luz
Ou a lira que teu riso me traduz

Seria como se eu jamais pudesse
Viver e despertar dessa saudade
Dos bons tempos de minha mocidade.


SONETO DO AMOR À LUZ DO TEMPO

Quando do amor, querida, sai poesia
Mesmo do mais singelo movimento
De cuja luz transborda um sentimento
Para tornar-lhe quente a cama fria

É que se ver na espuma o nascimento
De Vênus e o vislumbre da alegria
Vista no olhar infante que faria
Fugir qualquer que seja o sofrimento.

Mas se do amor surge uma canção
Transcendendo da vida em harmonia
Que os acordes palpitam nostalgia

Para um descompasso de emoção
Tem-se escrito o óbito que se leu
Daquele amor puro que morreu.


TEU SORRISO

Na vida
Pode faltar-me tudo
Falte-me a luz
A esperança
A alegria
A vontade
Falte-me até mesmo a vida
Falte-me o amanhecer
A tarde voe
O crepúsculo
A noite
Acabe o sonho
O sono
Só não me pode faltar o teu sorriso
Essa flor que me desabrocha em cores cuja essência inaugura uma réstia de luz que caminha na casa onde compartilhamos o gozo da vida
Esse fruto saboroso que me sacia
Essa dádiva
E loucura

PÁLIDO OLHAR ESTÚPIDO

Às vezes, você me deixava alegre
Às vezes, garota, achava que conseguiria tudo que eu quisesse
Se o tivesse
Teu pálido olhar triste
À procura do distante
Esse olhar de natureza morta

Quando mirava teu olhar
E o sentia no meu, ainda que despedaçado,
Teu pálido olhar triste
Nada desejava
Além de teu pálido olhar
Que se perdia numa nuvem qualquer que passava perdida no céu azul
Às vezes, garota, eu me via a sorrir
E estava certo de que era teu pálido olhar estúpido

Porquanto, garota, diga algo
Grite palavras de ira e desafeto
Que não tenho nada
Que nada tateio
Além da lembrança do teu pálido olhar
Além das andanças sempre cabisbaixo
Em que perdia a direção do céu
Para vê-lo apenas no reflexo de poças d’água com os sapatos molhados e o pensamento cheio de teu pálido olhar estúpido.

PEQUENA ELEGIA

É Poeta,
Tinha no meio do caminho uma pedra
Agora
Nesses tempos de louca servidão
Cegueira e devoção
Há enormes muros ilusórios
Na travessia do pensamento
Pois bem, Poeta,
Não há mais caminhos para pedras.

A MINHA PÁTRIA É A MINHA LÍNGUA

Estamos no segundo ano da vigência do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Ao observar um pouco a sociedade, podemos ter a certeza de que a grande massa não se interessa por questões dessa ordem. Embora o povo receba constantemente a culpa por tudo quanto de ruim que lhe aconteça – o povo é isso, o povo é aquilo... blá, blá, blá – desta vez, talvez o povo tenha razão.  Talvez não seja pertinente perdermos horas em debates impetuosos, tentando chegar à conclusão de que a reforma traz ou não prejuízos para cultura deste ou daquele país.
Certo é que a língua é dinâmica, mutável no tempo e no espaço; e não precisamos ir longe para comprovar tal afirmação, basta atentarmos a algumas particularidades da língua no Brasil e em Portugal, por exemplo. Aqui dizemos “Pois não!” para dizermos sim, lá “Pois não!” significa não; “bicha” no Brasil é homossexual, em Portugal é fila; “digital” em Portugal é “dedada”; “salva-vidas” (homem), além mar é “banheiro”; “banheiro” (casa), na pátria de Camões é “casa de banho” e “taxa de matrícula” é “propina”. Como se ver, mesmo que falemos a mesma língua, sempre haverá minudências, uma vez que são próprias de uma língua suas variações culturais de acordo com cada região na qual ela se desenvolve.
Diz que portugueses e brasileiros são contra a reforma. Estes, talvez, por sua pouca intimidade com a língua escrita, aqueles por serem “defensores” de sua cultura. Caros colegas de língua, não sejamos reacionários nem muitos menos analfabetos. A língua não é mais portuguesa nem de ninguém, nós que a usamos (devida ou indevidamente) é que pertencemos a ela. Portugal, em séculos passados, quando plantou em cada continente a semente desse belo idioma, ao mesmo tempo em que expandiu seus domínios impondo sua cultura, lançou mão da mesma. A língua fez seu decurso natural; não será normas de escrita (é bom que se frise, só começaram a ser pensadas há um século) que usurparão do povo português sua cultura, visto que esta não se encontra no corpo (grafema) da palavra, mas na sua alma patente; não serão normas de escrita que deixarão o brasileiro sem norte, à deriva no mar da palavra.  Em 1971, quando o decreto do governo altera algumas regras da ortografia de 1943: abolição do trema nos hiatos átonos: saüdade (=saudade), vaïdade (= vaidade); ambas as palavras continuaram as mesmas; continuamos saudosistas, sentimos a mesma saudade e, pelo visto, a mesma vaidade.
Sem uma união, a língua portuguesa tornar-se-á fragilizada no mundo contemporâneo. Precisamos fortalecê-la e um acordo único parece ser a iniciativa correta. Muitos são os países que finalizaram sua unificação ortográfica. Na língua francesa, o acordo concluiu-se em 1986; Em 1995 foi aprovada a última reforma neerlandesa, que abrange a língua falada da Holanda e de Flandres; A reforma ortográfica do espanhol concluiu-se em 1999 e abrange a Espanha e os países da América Latina; Em 2005 foi aprovada a reforma da ortografia da língua alemã. Assim como o português, são idiomas falados em várias nações além de sua pátria-mãe. Devemos, pois, procurar conhecer melhor o novo acordo para tirarmos nossas próprias conclusões.

Palavras... palavras...

Se... se... se...
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Mas... é... ou...
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Talvez... é... talvez...

ALENCAR ROMANCISTA

O autor de um dos mais belos romances brasileiros, O Guarani,veio ao mundo em uma terra de clima tórrido, mas fica difícil determinar até que ponto as intempéries pelas quais passa a gente cearense influenciaram seu caráter, ainda mais se lembrarmo-nos da pouca idade em que deixou a terra natal. Certo é que o próprio Alencar afirma a importância de uma penosa viagem, feita aos dez anos, através dos vales que unem o Ceará à Bahia: nela foram recolhidas as impressões mais profundas que terminariam por tomar feição literária. A visão do menino continuaria na sensibilidade do adulto, que a transformaria em obra de arte. Apenas a reminiscência fortemente marcada de saudade explicaria Iracema, talvez sua obra mais espontânea.
Considerado como uma das sensibilidades inteligentes mais artisticamente organizadas de nossa terra, o homem Alencar herdou do menino toda a imaginação com a qual nos brindou em seus romances. Era oficialmente o ledor de sua genitora, não se detendo apenas nas cartas ou jornais, mas também na pequena biblioteca familiar. Acabou por se tornar, ainda, o ledor preferido nos serões da chácara em que residia com a família. Araripe Jr. afirma ter ouvido do próprio escritor que estreara no mundo literário pela charada, tarefa dada a ele pelo Ver. Carlos Peixoto de Alencar, um seu parente. Seus risos apostólicos constituíram um orvalho para as agudezas de Alencar, que no futuro seria uma das notas mais acentuadas do literato ilustre.
Muito cedo José de Alencar tomou consciência de seu valor. Na vida acadêmica, não se deixou ocupar pelas polêmicas vulgares nem arroubos de juventude que predominam nesse período, evitando o desvio de seu verdadeiro objetivo e preparando-se prudentemente para uma estréia. Primou pela discrição, prudência pesquisa. Dedicou-se à leitura, sem descanso, de novelas e romances da literatura romântica. Aqui o leitor gerou o entusiasta e este, o escritor, mas tendo em suas leituras, em tempo, subordinadas a uma individualidade. Sua estréia, na capital, foi então uma surpresa para muita gente. O que ele procurava sem descanso não eram inspirações – estas ele as tinha: o que ele procurava era o estilo. E achou-o, pois o estilo foi a alma de suas obras. De resto, penetrar na gênese do espírito é uma impossibilidade.
Araripe Jr. é categórico ao afirmar que Alencar não foi um poeta inconsciente e que essa proposição basta para explicar toda a sua vida literária. Ouse, quem se achar com coragem, explicar a vocação. A sua obra, antecedeu um pensamento: sentiu-se forte, dirigiu suas faculdades e tornou-se um artista consumado.
A índole dos poetas germânicos lhe deveria ser odiosa, já que não existe um só escrito seu que denuncie impressão importante ocasionada por algum deles. Foram os poetas da luz e do amor os seus guias. A luz constitui toda a sua poesia, mas uma luz sem os excessos nem as trevas repentinas de seus mestres Chateaubriand e Lamartine. O difuso o horrorizava, a forma nítida era sua grande sedução. O que se torna patente é que não existiram autores que tão poderosamente concorreram para a formação de Alencar como os franceses, principalmente Victor Hugo e os confidentes do coração: Chateaubriand, Lamartine e Bernardin de Saint-Pierre. Da fusão dessas influências afirmou-se-lhe a poesia por toda parte, como a ternura da natureza revelada pelo som, pela cor, forma, luz e perfume.
Outros escritores poderiam ser considerados, tais como Scott, Cooper, Dumas, mas de maneira secundária. Porventura se constituíram seus mestres na construção, no molde, nunca no espírito dos cantos de Iracema.
As primeiras produções de José de Alencar não lhe desmentiram o dom artístico. Estreou pelos notáveis folhetins Ao Correr da Pena, nas páginas do Correio Mercantil, em setembro de 1854, um misto de jornalismo e literatura; eram crônicas leves, que tratavam do cotidiano da cidade. Atirou-se a uma vida de incessante movimento e produção.
Por essa época, a completa despreocupação dos problemas humanos e sociais era seguramente o que mais se coadunava com a índole contemplativa do estreante. Nenhum escritor nacional tinha feição própria ou individualidade suficiente para produzir sensação no país, onde o movimento romântico era apenas um produto ingênuo da paixão de alguns talentosos moços pelas poesias de Victor Hugo e Lamartine. Com os homens mais engenhosos encontrando-se fora do Brasil, também fora viveu a literatura brasileira. Alencar nem ao menos encontrou agitação que esses moços, mas os cisnes, felizmente, deslizam pelas águas serenas. Encontrava-se livre, portanto, de influências diretas, podendo fazer a seleção que era natural e escrever ao sabor de seus impulsos.
Os folhetins de Alencar tratavam de assuntos graciosos, dirigindo-se de preferência às moças. Seu mundo de impressões, de acordo com seu caráter amante da luz e dos suaves fulgores, abriu-lhe as portas. Se descrevia uma festividade, as flores e os sorrisos faziam-no esquecer de tudo. É rara a linha em que não brilha um raio de sorridente poesia.
Quando Gonçalves de Magalhães publicou A Confederação dos Tamoios, em 1856, Alencar, superpondo seu talento pelas diferenças, ressaltou a fraqueza do poeta em suas famosas Cartas à Confederação dos Tamoios. As belezas que aquele não soube exprimir, Alencar sentiu valentemente. A exuberância expressa neste trabalho de crítica não tardou em concretizar-se e sob forte inspiração saem dia a dia, Cinco Minutos(1856), A Viuvinha(1857), e O Guarani(1857), obras que, para Araripe Jr., constituem uma verdadeira explosão, traduzindo a alma artística de Alencar.
Os dois primeiros romances são miniaturas na forma, no sentimento, concentrando-se no garridismo e na faceirice femininos. Embora sejam misteriozinhos de fácil desenlace, o autor não permite escapar qualquer elemento que possa concorrer para o efeito plástico dos tipos que descreve, sendo esses precursores dos perfis de mulheres que predominam em sua obra. Estabelece-se assim, um terno parentesco entre todas as suas criações. Conseqüência da formação de seu espírito, o autor amava mais a natureza nas suas miniaturas do que na magnitude que arrebata, sua imaginação simpatiza com a flor, o pintassilgo, a juriti, a borboleta. E assim, sabendo-se com o artista vê os objetos, saberemos também como será sua obra: detalhista, para compor um todo esplêndido.
Romance onde a imaginação do autor se derrama em sua mais rica forma, n’O Guarani mostra-se cristalizada a alma do poeta. Os momentos artísticos não duram para sempre, dependem de circunstâncias especiais e só o que pertence ao escritor é a força inicial. Esta obra parece ter sido fruto de um desses estados mentais: é uma criação que talvez o próprio autor não conseguisse explicar.
Embora calcado no romance moderno, segundo os processos de Walter Scott aperfeiçoados por Dumas e outros, e em aspecto geral nada tendo O Guarani que se destaque dos melhores romances publicados até então, a originalidade da obra está na subordinação da natureza bravia à beleza feminil, na transformação de tudo quanto cerca a mulher. Essa concepção, pode-se dizer, resume-se na palavra Iara, senhora em tupi, que serve de título a um dos capítulos do livro.
A descrição da paisagem e das personagens esboça de imediato a sensação de não ser possível uma guarida para o mal, sendo todos os aspectos desagradáveis expulsos pelas tonalidades etéreas presentes. Sob o céu que habita Cecília, tudo é suave. As cenas sinistras do romance não passam de contrastes, claros-escuros, indispensáveis à harmonia do cenário. O poeta não fez mais que dar corpo aos sonhos de Cecília: tudo vai adorá-la e obedecer-lha, das pessoas à natureza. Sendo assim, nada mais natural que o selvagem Peri mostrar-se como um cavalheiro dos mais extremosos, adivinhando até seus pensamentos e chegando a afirmar que morreria somente para pedir ao Senhor uma nuvem para Ceci, se assim ela o desejar. Esse selvagem chega a um refinamento tal que faz esquecer sua origem.
Alencar coroa este romance com as tintas mais delicadas e gráceis de que se serviu sua inspiração, fazendo-nos sentir um indizível alargamento na alma logo no início da leitura. O Guarani, pois, constitui o oposto à miséria humana.
O grande crítico Araripe Jr., seguidor de Taine e leitor veemente do seu tempo, utiliza-se de argumentos partindo da filosofia evolucionista para explicar o declínio literário de Alencar. Diz Taine que a obra de todo artista divide-se em dois momentos, o primeiro é aquele em que nascem as obras de verdadeira inspiração e, de notável singularidade; o segundo são as imitações do primeiro, uma auto-cópia. O que para Araripe ainda não era o caso de Alencar, que segundo ele, não havia entrado nesse segundo período, pois suas faculdades exibiam-se muito vívidas ainda.
Este argumento é pautado, como toda crítica naturalista e positivista, em fatores fisiológicos, neste caso a sensibilidade. Vista aqui como um órgão que evolui, cresce e decresce, até se findar. Este processo de evolução e declínio da obra artística está intimamente ligado ao processo de excitação da sensibilidade. Esta, por sua vez, recebe influxos do meio onde atua o escritor, o que faz com que reflita em sua obra o estado espiritual, que é, assim, o efeito produzido pelo ambiente de interação em que está envolvido o autor.
Araripe delimita a data de 1865 como o início do declínio literário de Alencar, ano que também marca o começo de graves perturbações na vida do escritor, causadas por desavenças políticas que vieram a incutir no autor d`O Guarani
(1857) o elemento mórbido, nota constante na última fase de Alencar. É o fator “meio” atuando sobre o fator “raça”. Uma concepção determinista que se manifesta na crítica de Araripe Júnior.
Esta crise política abalou profundamente a sensibilidade de Alencar, homem extremamente sensível e de apurada percepção. E toda essa fase do escritor é carregada desse elemento penoso contrapondo-se ao Alencar de O Guarani. Araripe aponta a “veleidade de escritor ambicioso”, em Alencar, como o motivo que o levara à imprensa e à carreira política, ou, um segundo motivo, as circunstâncias em que se desenvolveu a sua vida. Podemos aqui, transcrevermos uma frase de Alencar que muito nos fala sobre o assunto acima citado:

“O poder nasce do querer. Sempre que o homem aplique a veemência e perseverante energia de sua alma a um fim, vencerá os obstáculos, e, se não atingir o alvo, fará pelo menos coisas admiráveis”.

Para Araripe Jr., todas as ações do romancista foram calcadas em duas paixões: a literária e o amor próprio. Sem sistematizar suas idéias, nem vislumbrar algo concreto na sua vida política, Alencar foi invadido pelo desejo de participar dos acontecimentos de seu país, a sentir-se desrespeitado e recordado por aqueles que o esqueciam. Esta vaidade produzira efeitos desagradáveis. Diz Araripe Júnior, “É preciso sempre que, quem brilhe, brilhe em nome de alguma coisa estranha e remota, ou no interesse desse público cioso, que tem sido por isto mesmo a causa de tantas desgraças”, e Alencar não ponderou sobre esse pensamento, nem tampouco calculou a oposição que enfrentaria, nem mesmo o norteamento da sua deliberação. Sua idéia principal foi sempre o embate com os homens e com os fatos, proferindo sempre algo novo. A sua índole o levou a divergências com os outros parlamentares, que se foram evidenciando, até chegarem à completa incompatibilidade. O fato é que, Alencar, com sua vasta e lúcida inteligência e sua excentricidade, atraiu para si o ódio e a má vontade de seus colegas que não hesitavam em ridicularizá-lo. Sobre a época parlamentar afirma Araripe: “...se empenhava com a ingenuidade de um artista e a confiança de um Hércules; mas que Hércules? Um Hércules a quem a pérfida da política envolvera em uma túnica de Nesso mil vezes pior!”.
José de Alencar teria, de acordo com Araripe, mais um grande desgosto, proporcional à aspiração que o invadia: a entrada na câmara vitalícia. Tendo como principal desafeto o imperador, Alencar sentiu-se suplantado ao ser excluído de uma cadeira senatorial. A tristeza afetou seu espírito, que o encheu de um sentimento igual a quem se acha num terreno escorregadio, nas palavras de Araripe Júnior. E completa: “começou a época dos desenganos e dos grandes desalentos. O céu dourado de sua pátria deixou-se aos poucos escurecer e o entusiasmo dos primeiros anos transformou-se na raiva e no pessimismo”. Uma conspiração parecia evidenciar-se, os adversários iniciaram “uma cruzada contra seu nome e sua fama”. Foi o golpe fatal. O corpo já cansado pelo esforço da luta, agravou-se o problema de fígado, e a palidez tornou-se mestra da sua aparência.
Araripe Júnior evidencia o liame entre o funcionamento de órgãos grosseiros que subordinam as funções do cérebro, a inteligência, a imaginação. Diz ele: “somos sempre o que o estado sadio ou não de nossos órgãos permite que sejamos”. E “míseros que somos devemos a maior parte dos nossos melhores pensamentos às nossas boas digestões”. Este fenômeno Araripe encontra-o em Alencar, comparando a primeira fase do romancista com a última que para ele tem início com a publicação d`O Gaúcho(1870).
Esse romance foi o primeiro que Alencar publicou depois da crise política. E nele podemos encontrar um novo elemento como nota toante e que alterou notavelmente o seu caráter: a morbidez, um céu penumbroso e um certo tom misantropo ambientam o novo romance.
O vicejante Alencar d`O Guarani já não era o mesmo, porém Araripe nos alerta para a seguinte observação:

“Todas as alterações se operavam sobre esse fundo móvel, que o homem nunca abandona e constitui o que, em filosofia, chama-se caráter.../...o caráter não muda, modifica-se”.

Desta maneira o Alencar ridente d’O Guarani não se elimina de todo, pois sempre estará presente a sensação original que, em substância, será a mesma. Alterando-se apenas sua maneira de ver e a intensidade de sentimento. A essência alencarina está constituída por essa sensação original, que preside toda a sua obra, a qual Buffon formulou nesta verdade – o estilo é o homem.
Alencar, mesmo recebendo influxos da enfermidade que o assolava, não deixa que o seu estilo desvaneça por completo. E em substância o Alencar d’O Guarani, permanece em O Gaúcho. Acrescenta-se a este o tom lúgubre na ambientação, influenciado pelos novos sentimentos que o invadiam. Para ilustrar melhor é preciso que leiamos uma passagem d’O Gaúcho.

Como são melancólicas e solenes, ao pino do sol, as vastas campinas que cingem as margens do Uruguai e seus afluentes!
A savana se desfralda a perder de vista, ondulando pelas sangas e coxilhas que figuram as flutuações das vagas nesse verde oceano. Mais profunda parece aqui a solidão, e mais pavorosa, do que na imensidade dos mares.
É o mesmo ermo, porém selado pela imobilidade, e como que estupefato ante a majestade do firmamento.
Raro corta o espaço, cheio de luz, um pássaro erradio, demandando a sombra, longe na restinga de mato que borda as orlas de algum arroio. A trecho passa o poldro bravio, desgarrado do magote; ei-lo que se vai retouçando alegremente babujar a grama do próximo banhado.
No seio das ondas o nauta sente-se isolado; é o átomo envolto numa dobra do infinito. A âmbula imensa tem só duas faces convexas, o mar e o céu. Mas em ambas a cena é vivaz e palpitante. As ondas se agitam em constante flutuação; têm uma voz, murmuram. No firmamento as nuvens cambiam a cada instante ao sopro do vento; há nelas uma fisionomia, um gesto.
A tela oceânica, sempre majestosa e esplêndida, ressumbra possante vitalidade. O mesmo pego, insondável abismo, exubera de força criadora; miríades de animais o povoam, que surgem à flor d’água.
O pampa ao contrário é o pasmo, o torpor da natureza.
O viandante perdido na imensa planície, fica mais que isolado, fica opresso. Em torno dele faz-se o vácuo: súbita paralisia invade o espaço, que pesa sobre o homem como lívida mortalha.
Lavor de jaspe, embutido na lâmina azul do céu, é a nuvem. O chão semelha a vasta lápida musgosa de extenso pavimento. Por toda a parte a imutabilidade. Nem um bafo para que essa natureza palpite; nem um rumor que simule o balbuciar do deserto.
Pasmosa inanição da vida no seio de um alúvio de luz!
O pampa é a pátria do tufão. Aí, nas estepes nuas, impera o rei dos ventos. Para a fúria dos elementos inventou o Criador as rijezas cadavéricas da natureza. Diante da vaga impetuosa colocou o rochedo; como leito de furacão estendeu pela terra as infindas savanas da América e os ardentes areais da África.
Arroja-se o furacão pelas vastas planícies; espoja-se nelas como o potro indômito; convole a terra e o céu em espesso turbilhão. Afinal a natureza entra em repouso; serena a tempestade; queda-se o deserto, como dantes plácido e inalterável.
É a mesma face impassível; não há ali sorriso, nem ruga. Passou a borrasca, mas não ficaram vestígios. A savana permanece como foi ontem, como há de ser amanhã, até o dia em que o verme homem corroer essa crosta secular do deserto.
Ao pôr do sol perde o pampa os toques ardentes da luz meridional. As grandes sombras, que não interceptam montes nem selvas, desdobram-se lentamente pelo campo fora. É então que assenta perfeitamente na imensa planície o nome castelhano. A savana figura realmente em vasto lençol desfraldado por sobre a terra, e velando a virgem natureza americana.
Essa fisionomia crepuscular do deserto é suave nos primeiros momentos; mas logo após ressumbra tão funda tristeza que estringe a alma. Parece que o vasto e imenso orbe cerra-se e vai minguando a ponto de espremer o coração.

Esta é uma nova perspectiva de mundo que fluía em Alencar. Desse modo o Brasil ostentado nas obras anteriores em brilhante limpidez, aos poucos, vai-se ofuscando. Seus livros – nas palavras de Araripe – “não são mais aquelas elações simples de poeta oriental para a região das ilusões eterna, ao contrário disso, transformam-se em repositórios disfarçados das suas queixas, dos seus despeitos, que involuntariamente se vão ampliando, estendendo, multiplicando, através das antigas e suaves concepções, em alusões políticas, pretensões e jeremiadas, no fim das quais se anulam ao intuito literários, a vitalidade mesmo dos personagens, para só aparecer forte, vigorosa, a sua misantropia encarnada nos heróis dos novos romances”.
No Gaúcho, Alencar deixa o culto à mulher como ponto central da narrativa e concentra-se num personagem triste, excêntrico, um ser amargo e misantropo, isolado da alma. Suas descrições já não transbordam vida como na descrição do rio Paquequer, no Guarani.
Toda produção de Alencar a partir de O Gaúcho, Araripe caracteriza como obras inferiores, que tem como fatores determinantes os despeitos, as frustrações políticas que abalaram os anos finais de Alencar e culminaram na anulação dos intuitos literários, marcando profundamente a última fase do escritor. As mágoas, os azedumes, dominam o seu fazer poético nessa época, transformando sua narrativa num rio de ressentimentos em que uma fera atingida rumoreja sua dor.
Seus últimos romances são povoados por protagonistas resignados e misantropos, como Manuel Canho do “O Gaúcho” e Mário de “O Tronco de Ipê”, que é para Araripe a progressão do tipo misantropo de “O Gaúcho”, “só com a diferença das exterioridades e de uma aproximação mais completa das indignações que sitiavam a alma do poeta”.
Por um lado percebemos uma visão um tanto quanto determinista; por outro, sabendo-se que Alencar representou o próprio Romantismo enquanto atitude, temos a justificativa para tal argumento: são as incursões da refletindo metaforicamente na obra do artista sensível ao mundo.
Na Revista Literária do Rio de Janeiro, em 1883, Machado de Assis escreveu, numa de suas apreciações artísticas sobre Alencar:

“Cada ano que passa é uma expansão da glória de Alencar. Outros apagam-se com o tempo; ele é dos que fulguram a mais, serenamente, sem tumulto, mas com segurança. Sã assim as glórias definitivas. Na história do romance e na do teatro, para não sair das letras, José de Alencar escreveu as páginas que todos lemos, e que há de ler a geração futura. O futuro nunca se engana”.

Talvez pouco se precise dizer sobre o que vaticinou o Mago de nossa literatura. A prova está no presente.